A cultura da autoajuda infantil: Crianças coach e o perigo da exposição ao sucesso fácil.
Nos últimos anos, o surgimento de crianças "coach" nas redes sociais tem gerado uma mistura de curiosidade e preocupação. Cada vez mais, vemos jovens influenciadores, alguns com menos de dez anos, conduzindo podcasts, palestras e conteúdos em vídeo sobre temas como educação, desenvolvimento pessoal e até política — com uma visão muitas vezes conservadora e crítica ao sistema educacional formal.
Esse movimento ganhou força graças à popularidade das redes sociais e ao crescimento de conteúdos de autoajuda. Crianças, ainda em idade precoce, falam sobre "meritocracia", criticam o sistema escolar tradicional e defendem a importância de uma mentalidade empreendedora. Esses influenciadores mirins atraem seguidores de todas as idades, que veem neles uma "sabedoria precoce".
A valorização do sucesso individual e da ideia de “empreender desde cedo” passou a permear diferentes âmbitos da sociedade, do mercado de trabalho à educação. Esse contexto cria uma pressão para que o desenvolvimento pessoal e o sucesso financeiro sejam alcançados rapidamente, como se o amadurecimento fosse uma corrida. A presença das redes sociais intensifica essa dinâmica. Plataformas como YouTube, Instagram e TikTok permitem que até crianças tenham audiência, gerando uma imagem de “mini-adultos” que sabem o que querem e possuem opiniões formadas sobre temas complexos, como o papel da escola e os "problemas" do sistema educacional. Para o público adulto, essas crianças podem parecer "prodígios" que já entendem de temas como produtividade e disciplina, o que gera admiração e incentivo — mas a que custo?
Essa tendência reflete uma sociedade que valoriza não apenas o sucesso, mas a busca constante por relevância. Em uma cultura onde realização e superação pessoal são medidas por números de seguidores, engajamento e lucro, até a infância é impactada, ganhando contornos de produtividade e performance.
No entanto, por mais maduras que possam parecer, crianças ainda estão em fase de desenvolvimento. A pressão de um público, os números de visualizações e até as críticas podem afetar negativamente seu crescimento emocional e psicológico. Esses jovens acabam se tornando espelhos de uma sociedade que, por vezes, instrumentaliza a infância, minimizando o valor da inocência e da experimentação.
A infância e a adolescência são fases cruciais para o desenvolvimento cognitivo, em que habilidades como pensamento crítico, análise e processamento de informações começam a ser construídas. Relembrando Piaget, ele foi um teórico da psicologia que desenvolveu a teoria da construção do conhecimento, também conhecida como Epistemologia genética. A sua teoria explica como o conhecimento é adquirido e construído na mente humana, desde a infância até a adolescência.
A teoria de Piaget é baseada na ideia de que o aprendizado é construído pela criança a partir da sua relação com as pessoas e os objetos. Cada descoberta é assimilada e acomodada ao que a criança já sabe, tornando o seu conhecimento cada vez mais amplo.
Expor crianças a conteúdos de autoajuda que incentivam uma mentalidade de “riqueza rápida” pode distorcer o processo natural de aprendizagem, priorizando uma visão simplificada e imediata de sucesso em vez da construção de competências sólidas. Esse tipo de exposição também pode impactar o desenvolvimento do lobo pré-frontal — área responsável pelo planejamento a longo prazo e pela tomada de decisões —, que, segundo estudos, só se completa aos 25 anos. Vygotsky defende que o aprendizado do indivíduo não pode ser dissociado do contexto histórico, social e cultural em que está inserido. Para aprender, elaborar conhecimentos e para se autoconstruir, o ser humano precisa interagir com outros membros de sua espécie, com o meio e também com a cultura.
Promover discursos de prosperidade instantânea e acumulação de riqueza desde cedo ignora etapas naturais do desenvolvimento infantil. O aprendizado deve ser construído gradualmente e de forma consistente, através de experiências práticas e interação com o mundo ao redor. A pressão pelo sucesso imediato, promovida por influenciadores e gurus da autoajuda, interfere nesse desenvolvimento, levando crianças a acreditar que fama e dinheiro podem ser obtidos sem esforço. Essa crença prejudica a formação de habilidades fundamentais como paciência, resiliência e pensamento crítico, além de desconsiderar o aprendizado de valores essenciais para a convivência em sociedade.
Na maioria dos casos, as famílias estão envolvidas nesse processo e, muitas vezes, incentivam essa exposição precoce, seja ao verem potencial financeiro ou acreditarem estar preparando seus filhos para o futuro. Contudo, a infância deveria ser um espaço para experimentação, erros e descobertas sem o peso do julgamento externo. Ao antecipar temas e discursos que cabem a adultos, essas crianças acabam “pulando” etapas importantes de desenvolvimento.
Muitos pais, seduzidos pela cultura da prosperidade fácil, tornam-se parte desse processo, prejudicando o desenvolvimento mental e emocional dos filhos. Ao incentivar ou permitir essa visibilidade precoce, os pais abdicam de seu papel como guias na construção de valores sólidos e na formação de uma visão crítica sobre o mundo. Como aponta Baumrind (1967), o papel dos pais é estabelecer limites e oferecer orientações para que os filhos cresçam de maneira equilibrada e saudável.
O fenômeno das crianças coach reflete, em última análise, os valores transmitidos às novas gerações. Quando uma criança de oito anos fala sobre sucesso, responsabilidade financeira ou "mentalidade de vencedor", estamos, em certa medida, suprimindo o valor das brincadeiras, das descobertas e dos erros como parte do aprendizado. Na infância, o desenvolvimento é mais saudável quando impulsionado pela curiosidade, pela experimentação e pelas interações lúdicas. Ao contrário de uma carreira, que exige uma visão objetiva e resultados concretos, o aprendizado na infância deve ser livre, permitindo que as crianças entendam o mundo ao redor e construam suas próprias identidades.
Promover a figura da "criança coach" como exemplo a ser seguido é problemático, pois cria a impressão de que as crianças devem "se apressar" para alcançar maturidade e competência, em vez de aproveitar a infância. Quando normalizamos a ideia de que até as crianças devem estar focadas em produtividade e performance, criamos uma sociedade que valoriza o sucesso acima do bem-estar e que perde de vista o valor da infância como um momento único de crescimento espontâneo.
A ilusão de transformar os filhos em "jovens empreendedores digitais prodígios" coloca a infância como um produto e minimiza o valor do desenvolvimento infantil em nome de visibilidade e lucro. Esse comportamento fragiliza as relações familiares e compromete a construção de uma identidade adulta saudável.